
Acorda, toma banho, despacha um pequeno-almoço improvisado e apressa-se para chegar ao trabalho. Tão depressa entra no elevador como, passado um par de segundos, está a sair dele. Entre esses segundos, encaixou oito horas de trabalho, sem reter qualquer memória do que aconteceu durante o dia, e pode ir agora gozar o resto da jornada.
Para muitos, esse poderia ser um cenário de sonho: um mundo em que a jornada de trabalho é ultrapassada com um estalar de dedos. E nenhuma preocupação do trabalho é trazida para casa. Este é o cenário desenhado por “Severance”, a nova série da Apple TV+ com um conceito refrescante, inovador e absolutamente excitante. Mas calma, há um lado negro neste paraíso. Pois claro.
O que torna isto possível é um procedimento chamado Severance que significa, literalmente, separar, cortar uma ligação. Na prática, no mundo da série, estes trabalhadores sujeitaram-se a um procedimento voluntário através do qual um dispositivo inserido no seu cérebro cria uma separação entre a pessoa e o trabalhador.
Passam então a existir duas pessoas dentro de um só corpo: o “outie”, o eu fora do trabalho; e o “innie”, a memória que só recorda o que acontece no interior do departamento da empresa. Existe, então, uma espécie de barreira geográfica: assim que o trabalhador desce no elevador, dá-se a severance, a separação, e a memória ativa é a do trabalho.
Na prática, isto significa que se o trabalhador vê as oito horas de trabalho passarem num estalar de dedos, o oposto também ocorre. A sua versão de trabalhador vive apenas para trabalhar, trancado no escritório. Quando termina o turno e entra no elevador, acorda novamente no dia seguinte, pronto para mais uma jornada de trabalho.
“Severance” agarra no velho conceito da “separação da vida pessoal e do trabalho” e eleva-o ao patamar de toda uma série de ficção-científica. É, na verdade, também um exercício de crítica à exploração laboral, ao sistema capitalista e ao endeusamento dos grandes magnatas e das suas empresas.
No mundo de Severance, há quem proteste contra este “sistema de opressão de mentes”, mesmo que todos estes trabalhadores se sujeitem voluntariamente ao sistema. Cada um dos trabalhadores escolheu escravizar uma versão de si próprio, encerrá-lo numa vida de permanente trabalho, para que o seu outro eu pudesse viver sem esse peso.
O esquema é da autoria de uma gigante empresa familiar, a Lumon, fundada por Kier Eagan, mais um daqueles magnatas que adquirem o estatuto de intocável. “Adoro esta hora do dia, a forma como a luz ilumina a sua cara”, comenta um dos funcionários sobre os raios de sol que batem na face esculpida do fundador no interior do edifício.
Dentro do departamento, tudo acontece segundo as regras estritas do manual assinado pelo fundador e as gerações da família que continuam a controlar a empresa. “Não deixem que a fraqueza corra nas vossas veias. Queridos trabalhadores, afoguem-na dentro de vós. Ergam-se do vosso leito de morte e avancem, ainda mais perfeitos para a batalha”, lê-se numa das passagens.
As versões trabalhadoras desconhecem qualquer pormenor da vida do seu eu original, do “outie”, e passam os dias a imaginar o que farão fora da empresa, sem nunca o poderem descobrir.
O protagonista é Mark, interpretado por Adam Scott, Mark Scout fora da empresa, apenas Mark S no Departamento de Refinação de Macrodados. Na verdade, nenhum dos quatro trabalhadores sabe exatamente o que está a fazer. A sua única tarefa passa por observar números num ecrã e encontrar padrões. Descobrir “os números assustadores”, explicam à novata. “Assim que os vires vais perceber.” Depois basta que os encaixem em quatro categorias misteriosas.
Cada um dos trabalhadores — Mark está acompanhado de Irving (John Turturro), Dylan (Zach Cherry) e Helly (Britt Lower) — tem várias teorias sobre o que estão, na verdade, a fazer. Mas ninguém sabe. Todos os movimentos e dramas são controlados por pela chefe Harmony Cobel (Patricia Arquette) e por um fiel supervisor, Milchick (Tramell Tillman).
É neste cenário que decorrem os nove episódios da produção da Apple TV+ que estreou a 18 de fevereiro e tem já garantida uma segunda temporada. Curiosamente ou não, no comando da realização está Ben Stiller, que dirige seis dois nove capítulos, marcados por uma soberba fotografia e uma curiosa mas eficaz escolha de banda-sonora.
Se o conceito é o grande tesouro de “Severance”, é o que está além da premissa inicial que ajuda a agarrar-nos à série. No centro de toda a confusão está Mark Scout que, na sua vida real, é um homem em processo de luto, depois de ter perdido a mulher num acidente de viação.
Os seus motivos, dramas e preocupações vão sendo revelados a um ritmo perfeito, não demasiado lento, mas de forma pausada, para que se consiga digerir a narrativa complicada pela dinâmica provocada pela Severance, a separação de memórias. A história criada pelo estreante Dan Erickson nunca se deixa deslumbrar nem cai em complicações desnecessárias à la irmãos Nolan.
A vida de Mark é perturbada quando o chefe de departamento, Petey, deixa de aparecer no trabalho. O súbito desaparecimento surpreende os colegas. Na vida real, tudo permanece na mesma, pelo menos até que Petey se cruza com Mark e lhe revela que é um dos seus melhores amigos no departamento.
É este cruzar de realidades que dá origem a um abalo neste delicado equilíbrio entre “innies” e “outies”. Cada uma das versões de Mark vai procurando respostas em cada uma das realidades. No interior da Lumon, os refinadores de macrodados começam também a descobrir que no labiríntico escritório se escondem outros departamentos, outros trabalhadores — onde temos o prazer de descobrir Christopher Walken como Burt, chefe do departamento de Ótica e Design.
“Severance” tem quase tudo: crítica social, humor sagaz e incisivo, personagens cativantes e uma pitada de absurdo. As críticas apontam para que a Apple TV+ tem nas suas mãos um sucesso que, será, sem dúvida de nicho — mas que poderá acelerar para uma segunda temporada épica. A melhor descrição de “Severence” já foi dada e é assustadoramente simples: uma fábula anticapitalista com um twist à moda de “Black Mirror”. Há poucas séries assim na televisão.

A fotografia é deliciosa