
Como se fossem soldados pacientes e honrados, os futebolistas formam duas filas, criando um segundo e terceiro pilares paralelos à linha branca de cal que divide o campo. Aguardam a entrada dos triunfadores dos tempos modernos, homens que levam nas botas uma barbaridade de histórias de conquistas, sacrifícios e prazeres. As munições são desenhadas de outra maneira e com outro material, vivem sobretudo de golos, passes e cortes, correrias e saltos. A gloriosa caminhada dos vencedores para o relvado é acompanhada por aplausos dos colegas de ofício. Há dignidade no momento. Chamam-lhe pasillo de campeón ou, em português, a guarda de honra.
Mas este não é um tema pacífico em Espanha, pelo menos nesta altura. É que começou a ser levantada a hipótese de os jogadores do Atlético de Madrid formarem as tais colunas para homenagearem o novo campeão nacional, o Real Madrid, no Wanda Metropolitano. No sábado, o Barcelona fez a tal manobra respeitosa para os atletas do Betis, ganhadores da Copa del Rey.
“É um sinal de respeito e desportivismo”, explicou Xavi Hernández, o treinador do Barça, abolindo a teoria da humilhação. “O Betis merece. [A Taça do Rei] é uma competição que jogámos e que a ganhou o Betis. Para mim, não há que pensar muito. Respeito e desportivismo. Falámos com os jogadores na quarta-feira, estavam de acordo. Dei-lhes a minha opinião, que me tocou fazer um pasillo ao Real Madrid e não tive problema. Há que ser desportista e ter respeito pelo rival. O resto são polémicas e histórias, para nós é respeito e desportivismo”, repetiu.
Esta tensão que se adivinha por se esperar, exigir ou questionar um pasillo de campeón em pleno estádio do Atlético de Madrid, o ex-campeão nacional, começou a ser fabricada ainda quando se fazia sentir um brando vento europeu. Antes da segunda mão da eliminatória entre Real Madrid e Manchester City, um jornalista espanhol perguntou a Pep Guardiola se os seus jogadores iam fazer a tal guarda de honra. Surpreendido, o catalão explicou que aquilo se tratava da Liga dos Campeões.
“Estas perguntas tentam sempre gerar um pouco de polémica, se disse, se não disse, se conta, se sente, se não sente…”, refletiu na véspera Diego Simeone, o treinador dos colchoneros. “A realidade é que o clube fez um comunicado muito concreto, explicativamente perfeito. Felicitar o Real Madrid antes de tudo, aos seus futebolistas, equipa técnica, que fizeram um trabalho impressionante ao longo da temporada, [temos] um grandíssimo respeito pelo Real Madrid, mas está claro que temos muito mais respeito pela nossa gente, que é a que está todos os dias connosco.”
Ou seja, não haverá pasillo de campeón.
Sem charuto, sereno e apaziguador, Carlo Ancelotti foi Carlo Ancelotti. “Nós, italianos, não estamos habituados ao pasillo. Cada um tem que fazer o que quer, o que sente e nós temos de respeitar. O Atlético é um clube vizinho e amigo. Se o fizer, bem, agradecemo-lo. Se não o fizerem, está tudo bem. Respeitamos o que fizerem”, disse o treinador, o primeiro a vencer as cinco principais ligas europeias.
De onde vem, afinal, esta tradição da liga espanhola? É preciso recuar até 1970, escreve o “ABC”, quando o Athletic Bilbao estreou aquela airosa homenagem ao Atlético de Madrid. Foi num encontro para os oitavos de final da Taça do Rei: os bascos, que ficaram a um ponto dos colchoneros, tiraram o chapéu aos novos campeões de Espanha. Javier Clemente (Athletic) e Luis Aragonés (Atlético) estavam entre as figuras que viveram uma nova forma de estar no desporto.
Carlo Ancelotti e Diego Simeone, num dérbi de Madrid, em 2013
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Muito mais tarde, em entrevista ao “La Vanguardia”, o guarda-redes do Athletic, José Ángel Iribar, explicaria aquela situação. “Pareceu-nos o mais correto e adequado. É um gesto que os honra a eles e a nós. O nosso treinador era uma pessoa muito educada e vinha de uma escola muito boa.” O tal treinador muito bem formado era Ronnie Allen, contratado pelo Sporting em 1972/73, que acabou por não ter muita sorte e foi despedido antes da temporada acabar.
Recentemente, Javier Clemente explicou, numa entrevista ao “Deia”, que a decisão às vezes pode não ser assim tão simples. Se o Atlético faz o pasillo ou não é coisa deles. Imagina que tens de fazer o pasillo a um público que te tratou muito mal, pois então dizes que não o fazes e já está. O mais bonito é que não haja problemas e se façam estes reconhecimentos, mas nem sempre é assim”, lamentou.
Com a vitória ao Betis, o Barcelona garantiu uma das vagas na próxima edição da Liga dos Campeões. Essa é uma luta onde ainda está o Atlético de Simeone, que está na quarta posição, com mais três e cinco pontos do que os andaluzes e a Real Sociedad.
“Estamos num momento determinante da época”, alertou o técnico argentino. “Faltam quatro finais. Vamos enfrentar o dérbi com ganas, ilusión e entusiasmo. E trataremos de ignorar tudo o que se está a falar à volta. A única coisa que nos interessa é o resultado.”
O Atlético-Real joga-se esta noite, no Wanda Metropolitano, às 20 horas (Eleven Sports1).