
Ao segundo single, Snoop Doggy Dog não demorou muito a anunciar ao que vinha. “Rollin’ down the street, smokin’ indo, sippin’ on gin and juice”, atira no segundo grande tema do disco de estreia lançado em 1993, onde o consumo de canábis está um pouco por todo o lado.
No arranque dos anos 90, Calvin Broadus era um rapper em ascensão e depois de uma ajuda preciosa de Dr. Dre, lenda dos N.W.A., lançou-se a solo e adotou para si a imagem de consumidor inveterado de marijuana. Com o país ainda a ressacar da guerra sem tréguas ao tráfico e consumo de droga iniciada por Ronald Reagan, Snoop Dogg assumiu uma figura contra-corrente — e polémica.
Feitas as contas, mais de 46 por cento das centenas de músicas lançadas pelo rapper falam sobre o consumo de marijuana. Quase trinta anos depois de entrar na cena musical, Snoop Dogg já não é apenas um músico — é o dono de um império de canábis, construído graças aos seus anos de ativismo e à maior liberalização e legalização da droga. E o seu mais recente investimento foi feito precisamente em Portugal.
Fê-lo através da Casa Verde Capital, o fundo norte-americano de investimento no setor da canábis criado em 2015, do qual é um dos fundadores. Os milhões servirão para ajudar a produtora de canábis medicinal AceCann a criar um novo centro de produção em Vendas Novas.
“Isto é tudo o que eu conheço. Desde a primeira vez que me ouviram numa canção, é só do que eu falo”, explica sobre o seu ativismo. “Não é uma jogada política; só uso a minha voz quando é necessário. Apenas soa a política, mas nunca é, é apenas a voz do povo. Por vezes eles não têm voz e eu tenho que falar por eles.”
Hoje, o rapper é uma das figuras públicas que assume o consumo recreativo da substância ilegal na maioria dos países. Nunca o escondeu, nem mesmo durante o período repressivo das últimas décadas, que foi sendo suavizado, primeiro com a liberalização e em 2012 com a legalização do uso recreativo nos estados de Washington e Colorado.
Foi também a sua atitude despreocupada que muitos afirmam ter ajudado a mudar mentalidades. “Há tanta gente ainda fechada no armário. Estamos a dar-lhes a oportunidade de saírem dele e admitirem que gostam de fumar”, nota. “Eu sou um fumador, o meu nome é Snoop Dogg e gosto de me pedrar.”
Podia ter ficado no sofá a gozar os louros de ter ajudado a empurrar o país para a legalização, mas não o fez. Tirou partido da imagem e criou um enorme império assente na explosão do consumo recreativo. Começou por lançar a Leafs by Snoop, a sua própria marca de canábis.
“Como um grande connoisseur e especialista em canábis, achei que estava na altura de dar ao meu povo aquilo que eles queriam, algo no qual pudessem confiar”, explicou no lançamento da marca em 2015 e que se tornou num sucesso.
No mesmo ano lançou a Merry Jane, uma plataforma digital que reúne todo o conteúdo que gira à volta do mundo da canábis; e fundou a Casa Verde Capital, com participações em dezenas de empresas do setor. E ainda em 2017 o raper expandiu o império com a sua própria marca de cachimbos de água, a POUNDS.
O mundo é hoje bem diferente daquele em que Snoop Dogg se lançou na música, de microfone numa mão e de charro na outra. O consumo tão associado aos rappers e aos gangues está hoje relativamente generalizado — e normalizado.
Isso não liberta o músico de um passado negro, sobretudo de um episódio que por pouco não destruiu a carreira antes de ela explodir. Ainda antes de lançar o disco de estreia, Snoop Dogg era uma celebridade em ascensão, preso a meio caminho entre as ruas perigosas onde cresceu e a fama.
Ao volante de um carro, a poucos metros de casa, viu-se no meio de um tiroteio protagonizado pelo seu guarda-costas e um membro de um gangue rival. O rapper acelerou e fugiu. Havia de se entregar à polícia dias depois, acusado de homicídio.
Protegido por uma equipa de advogados com o famoso Johnnie Cochran — um dos célebres defensores de O.J. Simpson —, Snoop Dogg só seria presente a tribunal dois anos depois. A dúvida que percorria os jurados e a negligência da polícia acabou por resultar na libertação do rapper e do seu guarda-costas.
Durante toda a carreira, os problemas com a lei perseguiram-no. Por altura do julgamento era já um homem com cadastro, depois de uma detenção por posse de cocaína em 1989 e outra por posse de arma ilegal em 1993. Voltou a ser apanhado e multado por posse, desta vez de marijuana em 1998, 2001 e num célebre caso em 2012, que resultou na proibição de entrar na Noruega durante dois anos.
Pouco a pouco, legalização a legalização, o mundo viria a provar que Snoop Dogg talvez tivesse razão. O rapper não é o único a participar nesta corrida aos biliões do novo setor do consumo recreativo — de Seth Rogen a David Beckham, todos querem um pedaço dos lucros. Para Dogg, é “tudo muito fixe”.
“Que o governo nos deixe fazer dinheiro com isto em vez de nos atirar para a cadeia, é uma cena fixe, mas sinto que ainda falta voltarem atrás e libertarem todos os que ainda estão na prisão por causa da marijuana. Se vais torná-la legal…”, nota.
“Imaginem que os traficantes — eu trato-os por vendedores de rua — se conseguiam posicionar na indústria que existe hoje. Ganhariam imenso dinheiro também. E as coisas são tão difíceis para os negros, para quem tem cadastro, de conseguirem uma licença para vender canábis legalmente.”
Não será surpresa para ninguém que, na visão do rapper, a indústria vá acabar por gerar “biliões e biliões de dólares” nos próximos anos. Snoop Dogg mantém também algum otimismo de que “algum irá parar às mãos certas”. Fala das “pessoas que merecem receber algum dinheiro disto tudo” e não das que “querem apenas sacar algum”.
“As pessoas que estavam na cena antes de ela ser legal, que tentavam construir algo, elas é que deviam receber dinheiro; e não as que já têm muito dinheiro”, diz, sem explicar se o próprio pertence a uma ou outra categoria — ou a ambas.