
Novo livro diz ter descoberto quem traiu Anne Frank aos nazis — mas há quem não acredite
Mais de 75 anos depois, uma nova investigação diz ter encontrado o culpado, um notário judeu. Vários especialistas desacreditam a descoberta.
Quando Otto Frank regressou a Amesterdão, estava sozinho. Era o único sobrevivente da sua família, levada para os campos de concentração depois de terem sido descobertos no esconderijo onde viveram durante vários anos.
Desse drama permaneceu a memória de Anne, a jovem que descreveu a experiência traumatizante no seu diário, que serve hoje como um dos mais pessoais e simbólicos testemunhos dos horrores do Holocausto. Em 1945, o seu pai voltou a casa, onde recebeu uma nota anónima que apontava para o homem que teria revelado aos nazis a localização do esconderijo — e que, de forma indireta, condenara a sua família à morte.
Nesse papel estava o nome de Arnold van den Bergh, um notário judeu. Otto entregou a potencial pista aos detetives que voltaram a investigar o caso em 1963. O caso nunca foi resolvido, até hoje, revelam os responsáveis por uma nova investigação que chega às bancas em formato de livro.
“The Betrayal of Anne Frank: A Cold Case Investigation” foi lançado esta terça-feira, 18 de janeiro, nos Estados Unidos da América, e está a agitar a opinião pública, sobretudo as comunidades judaicas. Para os investigadores, o homem que traiu os Frank foi mesmo Bergh, conhecido membro do Conselho Judaico de Amesterdão que morreu em 1950, vítima de um cancro.
No comando da operação esteve Vince Pankoke, um veterano do FBI que apostou nas novas tecnologias como a inteligência artificial e a análise de dados para tentar descobrir novos indícios. Os trabalhos começaram em 2016 e envolveram uma equipa com mais de 20 elementos.
Ao contrário do que seria de esperar, nenhuma das tecnologias foi fulcral na conclusão, que foi tirada a partir de muitas das provas já existentes e analisadas por diversos investigadores. Os achados foram compilados em livro por Rosemary Sullivan, que deu o contexto essencial para a conclusão.
“Em 1939, nos novos países ocupados e nos guetos judaicos, eram estabelecidos Conselhos Judaicos que agiam como um filtro entre os ocupantes e as comunidades judaicas.” Era através deles que os alemães impunham as regras específicas, aplicadas apenas aos judeus. Cabia depois aos membros dos conselhos espalharem e implementarem as ordens.
Segundo a investigação de Pankoke, Bergh usava o estatuto de membro para evitar ser enviado para um dos muitos campos de concentração. Outros, como os Frank, não tinham a mesma sorte. Viveram durante dois anos escondidos no pequeno anexo da fábrica onde Otto trabalhara, pelo menos até serem denunciados, presos e enviados para os campos.

Bergh numa das reuniões do Conselho Judaico
Um ano depois, a guerra terminava e as autoridades holandesas faziam o seu trabalho: caçar os criminosos que, contra a lei, entregaram os seus compatriotas às mãos dos alemães. Bergh, apesar de potencial suspeito, nunca foi acusado.
A investigação que começou em 2016 teve muitos meios para fazer o seu trabalho, inclusive doações da própria cidade de Amesterdão. E um supercomputador analisou moradas e identidades, na tentativa de eliminar suspeitos — e encontrar outros.
Acabaria por ser a tal nota anónima entregue a Otto que serviria de cola a todos os outros indícios. “Sabemos que o Conselho Judaico foi dissolvido no final de setembro de 1943 e que [os membros] foram enviados para os campos. E pensámos, bem, se o Arnold van den Bergh está num campo qualquer, não poderia ter acesso a informação que poderia comprometer a localização do anexo”, revelou Pankoke.
Só que descobriram mais tarde que Bergh estivera por Amesterdão nos últimos anos da guerra, a peça que os ajudou a montar o novo caso. “No seu papel de membro do Conselho Judaico, ele teria acesso às moradas dos esconderijos dos judeus. Quando Bergh perdeu todas as proteções dadas pelo Conselho e que o ajudavam a fugir dos campos, ele teve que fornecer algo de valioso aos nazis para que ele e a sua mulher pudessem manter-se a salvo.”
O investigador principal não é perentório e admite que possa existir “uma dúvida razoável” sobre a sua inocência, até porque não há provas absolutamente claras da sua culpa. “Diria que [Bergh] era um jogador de xadrez. Ele pensava em termos de proteção, nos meios que teria à sua disposição para evitar ser enviado para os campos.”
Para outros historiadores e investigadores, as conclusões de Pankoke podem ser altamente precipitadas. “As provas são muito escassas para se poder acusar alguém. Esta é uma acusação enorme, cheia de suposições que assentam em pouco mais do que um fragmento de informação”, explica ao “The New York Times” Emile Schrijver, diretor do Bairro Cultural Judaico de Amesterdão. Não está sozinho.
Segundo Laurien Vastenhout, investigadora, não há qualquer evidência que comprove a existência de uma tal lista que incluísse as moradas dos esconderijos dos judeus e, portanto, nenhuma certeza sobre se Bergh saberia do paradeiro dos Frank e de outros. “Porque é que as pessoas que estavam escondidas dariam a sua morada ao Conselho Judaico?”, questiona.
Embora existam muitas dúvidas sobre a atual investigação, o diário americano demonstra a dura realidade de que vários judeus foram instrumentais na concretização de muitos dos horrores do Holocausto. Cita, por exemplo, Hannah Arendt, a filósofa, autora e sobrevivente que explicou que a Solução Final “nunca teria sido possível sem a ajuda de judeus no trabalho administrativo e de vigilância”. Um tema delicado entre a comunidade judaica, na qual muitos sentem que esta é apenas mais uma forma de os culparem pelo período mais negro da sua história.
“Há um nome para isto”, explica o escritor Dara Horn ao “The New York Times”. “Chama-se a ‘inversão do Holocausto’. Há uma razão pela qual isto atrai o público não-judeu. Dá-lhes a sensação de não terem que pensar na sua própria responsabilidade.”