
Ilídio Leal tinha apenas 16 anos quando começou a fazer rádio, no posto emissor do Funchal, na estação Rádio da Madeira. O que fazia era, basicamente, ler a chave do Totobola, até começar a fazer mais coisas como locutor. Estávamos em 1975, em pleno período revolucionário, e um ano depois regressaria ao continente — onde nasceu — para continuar a sua vida profissional.
Hoje, tem 65 anos. Vive num lar de idosos — a casa de repouso A-das-Lebres, em Loures — e continua a fazer rádio. Há cerca de três meses, criou a Rádio Memória, um projeto digital que faz a partir do seu quarto, apenas com um computador portátil e um estúdio virtual. Todos os dias, entre as 21 horas e a meia-noite, Ilídio Leal entra em direto para falar com os ouvintes e passar música. O programa chama-se “A Cor do Som”.
O caminho até aqui não foi fácil. Nos últimos quatro anos viveu em situação de sem-abrigo, de forma intermitente, porque também passou por várias instituições. “Por erros meus, por más escolhas que fiz durante a vida… Sou filho único, os meus pais faleceram e deixei de ter uma estrutura atrás de mim. Por alguns erros que cometi comecei a ficar sem chão e vim parar a esta situação de sem-abrigo”, explica à NiT.
Entre os 16 e os 65 anos, trabalhou em muitas rádios locais. Foi locutor na Rádio Clube do Sul, em Faro; na Rádio Horizonte Algarve, em Tavira; ou na Rádio Cova da Beira, entre outras. Simultaneamente, esteve ligado à área do entretenimento. Foi palhaço em vários circos, fez teatro amador e apresentou espetáculos. “Enfim, tive sempre uma vida ligada à área do espetáculo.”
Começou a trabalhar como palhaço por acaso. “Foi uma altura em que estava a fazer teatro e fazia uma personagem que era o palhaço Zézé. E alguém do circo Mariano me convidou para começar a trabalhar no circo. Como sou um bocado aventureiro, fui, gostei e pronto, continuei até há bem pouco tempo.” Também trabalhou nos circos Texas e Roma, entre outros. No teatro, esteve sobretudo no Grupo de Teatro de Santa Clara, onde também foi encenador. “Sempre gostei de espetáculos, do palco e experimentei algumas áreas.”
Até há quatro anos, continuava a trabalhar como palhaço e na rádio, ocupações que intercalava. “Entretanto o que apressou mais esta situação foi um ataque cardíaco que tive e a partir daí as coisas começaram a ficar muito complicadas.” Deixou de conseguir trabalhar. “Tinha uma casa em Rio de Mouro, estava em condições, mas claro que deixei de trabalhar e de ter rendimento. Deixei de ter condições para pagar as minhas contas e aí as coisas precipitaram-se. Perdi tudo, infelizmente.”
“Ainda tinha alguns amigos que me iam dando guarida, mas como sou um bocado… não é orgulhoso, mas não queria maçar ninguém. E por isso resolvi ir para a Santa Casa da Misericórdia. Como fiz muitos espetáculos para a Santa Casa, para lares e centros de dia, tinha alguns conhecimentos lá dentro. Claro que nessa altura vi-me aflito e fui bater à porta da Santa Casa, que me recebeu e apoiou. Mas todos passamos pela fase de rua”, acrescenta.
“As pessoas têm a tendência de olharem para os sem-abrigo de lado, de se afastarem. Não façam isso. Nós somos pessoas como outras quaisquer. Temos sentimentos, choramos, rimos. Façam apenas uma coisa que já é muito boa: deem-nos um olá ou digam apenas ‘bom dia’. Para que nos continuemos a sentir vivos.”
Nessa fase, sempre que podia, continuava a ouvir rádio — mas não era fácil. “Claro que na rua era difícil fazer ou ter alguma coisa. Mas sempre que podia lá estava eu com o meu ouvidinho, fechava os olhos e recordava. Foi muito difícil. Mas não culpo ninguém, nem a sociedade. Nós temos tendência de culpar a sociedade por aquilo que nos acontece. Mas não. Fiquei nessa situação, repito, por más escolhas que fiz. Ganhei muito dinheiro, as escolhas que fiz é que foram más — o que me levou também a ficar sem estrutura familiar.”

Tem 65 anos.
Ilídio Leal chegou a estar casado, mas era “uma criança” de 17 anos. A relação só durou cerca de um ano e meio. Teve outras relações ao longo da vida, mas nunca nada muito estável ou de longa duração. “Com a vida que levava era um bocado difícil criar uma família, porque andava de um lado para outro, e também nunca me agarrava aos mesmos lugares. Nunca me acomodava. E sempre pensei: para quê ter uma família se não vou estar presente? Portanto nunca me preocupei em casar ou ter essa família.”
Acabou por conseguir ter o apoio da Santa Casa da Misericórdia, que o apoia para neste momento estar num lar particular — que impediu a NiT de visitar Ilídio Leal para lhe tirar uma fotografia para este artigo.
Ilídio Leal já tinha criado outras rádios online, mas suspendeu os projetos por falta de condições. Nos últimos meses, conseguiu começar as emissões da Memória. “Sentia necessidade de comunicar. Estava num [outro] sítio em que olhava para o lado e via, infelizmente, pessoas muito dependentes. Onde não conseguia comunicar com ninguém. Precisava de me refugiar um pouco, de ter algo de que gostasse, por isso criei a Rádio Memória.”
A direção do lar atual deu-lhe autorização para fazer as emissões a partir do computador. “O nome da rádio diz tudo. Sempre gostei de coisas antigas e vou buscar temas antigos, passo música dos anos 60 e 70 e vou interagindo com outras pessoas que, através de um chat, comunicam comigo. É como se estivesse numa rádio, mesmo.”
Além disso, há uma locutora da ilha de Porto Santo, no arquipélago da Madeira, que faz um programa na Memória. O resto da emissão é composto por uma playlist. Embora haja um foco na música dos anos 60 e 70, Ilídio Leal também passa música contemporânea.
“Todos os dias vou ao YouTube e ando sempre à procura de temas novos, de novos valores, para inserir na rádio. E, além passar música, tenho blocos informativos que vou retirando do YouTube. Sobre desporto, sobre música… Também passo algum teatro, revista à portuguesa, e as pessoas vão aderindo. Neste momento tenho uma média de 100 ou 120 ouvintes por dia, o que é muito bom numa rádio online.”
Através do Facebook, vai comunicando com os ouvintes e divulgando o trabalho que faz. A emissão do seu programa, “A Cor do Som”, também é transmitida em direto numa rádio online madeirense, chamada Pérola Dourada, com quem fez uma parceria.
No lar, conta que os funcionários têm alguma curiosidade, mas os outros utentes “não ligam” — a maioria é mais velha e está em piores condições de saúde. Diz estar contente por ter uma cama, comida e um sítio onde ficar. Mas gostava de ter uma oportunidade de sair dali para continuar a trabalhar.
“Claro que não estou satisfeito a 100 por cento porque não era esta a vida que queria. O que queria era que alguém — e já lancei esse apelo no Facebook — de uma rádio local por aí que me desse trabalho. Não preciso de ordenado: desde que me arranjem um sítio para ficar, deem-me trabalho, por favor. Porque quero continuar a ser útil à sociedade.”
E acrescenta: “Adoro fazer madrugadas. Quando ia para as rádios locais, fazia as madrugadas, e gostava de voltar a ter o contacto com as pessoas. Para mim era como se saísse o Euromilhões. O meu programa é um oxigénio para mim, é uma maneira de me sentir vivo. Amo mais a rádio do que amava uma mulher. Amo a rádio, e no dia em que deixar de poder falar ao microfone, nesse dia morro.”