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Foi publicado em 2016 na Noruega e provocou uma bola de neve que nem a própria autora viu chegar. Herança é a história de quatro irmãos e uma disputa: duas casas de férias atribuídas pelos pais a apenas metade dos filhos. Problema: a narrativa é tão parecida com o drama familiar da própria autora, Vigdis Hjorth, que desencadeou curiosidade e polémica.
“A minha vida pessoal não tem sido um caos desde a publicação do livro. O caos começou há 30 anos quando perdi a minha família”, explica ao Observador.
Refere-se ao momento em que se afastou dos irmãos e dos pais, exatamente como acontece com Bergljot, a figura principal de Herança. Quando a obra chegou às livrarias, a família desencadeou um drama na comunicação social norueguesa, acusando a autora de escrever uma história demasiado próxima da realidade e de representar injustamente os seus membros. Uma das irmãs, Helga, foi mais longe e escreveu outro livro, Livre Arbítrio, a contar uma versão muito diferente dos acontecimentos.
Para caracterizar esta guerra começaram a surgir expressões como “romances de vingança” e “auto ficção”, embora Vigdis Hjorth continue a garantir que a sua obra não se insere nesta categoria. “Claro que me uso a mim e às minhas experiências quando escrevo, como também uso as dos outros, mas invento a maior parte”, garante.
A capa de “Herança”, de Vigdis Hjorth, na edição da Livros do Brasil
Bergljot, a protagonista do livro, escreve críticas sobre teatro, tem três filhos (como Hjorth) e só entende o que a tem atormentado durante décadas quando a luta pela herança lhe desencadeia memórias que tinha reprimido. Um trauma da infância que quis apagar, mas que esteve sempre nos bastidores da sua vida, a pairar como um abutre.
A escrita da autora norueguesa de 62 anos vagueia entre passado, presente e pensamentos filosóficos, mas é assertiva. A tensão vai aumentando de página para página, à medida que especulamos sobre o evento traumático em causa. O sofrimento de Bergljot é real, íntimo e comovente — e muitas vezes nem precisa de ser descrito ao pormenor.
“Penso que em comum com a Bergljot tenho o facto de às vezes procurar a rejeição final em vez de ter uma esperança constante e depois ficar desapontada. Isso é muito cansativo, apesar de haver liberdade na resignação”, revela.
A libertação para a personagem só acontece quando reúne toda a família no mesmo espaço e a confronta com o que lhe aconteceu no passado. A reação não é a que Bergljot deseja mas é um fardo que lhe sai de cima. Até chegarmos a esse momento, o texto é envolvente e intenso, embora nem tudo seja programado ao pormenor.
“Apesar de os meus romances serem muito diferentes, o processo de escrita é praticamente igual. Nunca sei como vai ser a página seguinte, surpreendo-me constantemente, embora saiba para onde vou. É muito intuitivo”, explica Vigdis Hjorth.
Para a autora, foi “uma grande surpresa” o impacto que Herança teve, tanto na sua carreira, como na vida pessoal. Por outro lado, já previa a reação da família. A editora que estava prestes a publicar a obra, em 2016, foi contactada por um advogado e, segundo Hjorth, foram os familiares que deram informações a um jornal norueguês. A partir daí, rebentou a polémica e a busca incessante para encontrar os pontos comuns entre realidade e ficção.
“A minha perceção é que foi a imprensa que quis verificar ‘as semelhanças com a história da Vigdis’. A maioria dos leitores não se importou muito com isso — ou, pelo menos, não me disseram. Acho o debate interessante e esclarecedor e penso que a maioria dos leitores entendeu o que queria dizer com o romance.” Se mudaria alguma coisa na história hoje? “Não, a minha família já estava desfeita. O pior aconteceu há muitos anos.”
Culpa, repressão, incompreensão e sentimentos contraditórios são embrulhados numa narrativa de sobrevivência e empoderamento. A linha é muito ténue entre o que é autobiográfico ou não, mas o que interessa a Vigdis Hjorth é a mensagem de luta do romance, cuja personagem principal só quer ser ouvida. Muitas pessoas com traumas semelhantes têm contactado a autora. “O mais interessante é que as histórias são surpreendentemente semelhantes”, revela.
“Herança” venceu o Prémio da Crítica e o Prémio dos Livreiros Noruegueses e, apesar de ter mais de 20 títulos no currículo, é o primeiro romance de Vigdis Hjorth traduzido para português. Com edição da Livros do Brasil, está à venda desde setembro.
As edições em novos países desenterraram novamente a polémica da vida real, mas isso já não afeta a autora. “Sou escritora há 40 anos e ainda não mudei de ideias sobre a relação dos escritores com a chamada realidade. Usamos o que precisamos, mas transformamos sempre o que vemos, fazemos disso literatura.”