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Movimentos involuntários, assobios prolongados e até asneiras, sejam elas verbais ou gestuais. Os vídeos dedicados à Síndrome de Tourette são cada vez mais omnipresentes na rede social Tiktok, com a hashtag #tourettes a acumular 5 mil milhões de visualizações. A aplicação desenvolvida pela chinesa ByteDance chegou ao mercado em 2016, mas foi no auge da pandemia que explodiu em popularidade — tanto que, de acordo com o The Wall Street Journal, em outubro a empresa registava mil milhões de utilizadores, sendo a aplicação não relacionada com jogos mais descarregada em agosto.
Mas à medida que o TikTok dominava a atenção dos fãs, outro fenómeno surgia. Desde março de 2020, especialistas nos Estados Unidos da América, Austrália, Canadá e Reino Unido assistiram a um aumento dramático de jovens pacientes à procura de tratamento para tiques — eram sobretudo raparigas com um número pouco usual de tiques que se tinham desenvolvido de forma rápida (muitas, acrescenta o WSJ, já tinham sido diagnosticadas com ansiedade ou depressão, provocada ou exacerbada pela pandemia). Os médicos assinalaram, então, um denominador comum entre eles: o uso do TikTok, com alguns especialistas a explicar que as jovens assistiam aos vídeos de tiktokers alegadamente com Síndrome de Tourette.
@thistrippyhippie mums bday meal♥️the waitress at the end told me i made her night????????#tourettesawareness #foryou #tourettes #foryoupage #awareness
O fenómeno do TikTok tornou-se de tal forma inegável que, em 2020, a Forbes dedicava a primeira lista aos sete tiktokers que mais dinheiro faziam. Mas além de jovens estrelas como Addison Rae ou Charli D’Amelio, outras figuras destacavam-se no universo dos vídeos de poucos segundos — certamente o suficiente para captar a atenção de muitos utilizadores habituados ao scroll quase automático. Mais recente é publicação norte-americana The Atlantic, com um artigo sobre as “superestrelas com Tourette do Tiktok”, onde se argumenta como influencers com algumas incapacidades estão a usar aquela ferramenta social para combater o estigma em torno da doença.
Evie Meg, talvez mais conhecida pela conta de TikTok “This trippy Hippie”, onde acumula mais de 14 milhões de seguidores, é uma das mais seguidas no Reino Unido, ao ponto de receber destaque na BBC, onde defende querer educar as pessoas sobre a realidade de viver com a Síndrome de Tourette (foi diagnosticada em 2020, em plena pandemia). Depois de ver os artigos que reportam o aumento de tiques, Evie Meg ponderou parar de publicar vídeos onde evidencia a Síndrome de Tourette, mas a vontade de criar consciencialização em torno da doença falou mais alto.
Mais complicados são os casos de influencers com Tourette a alertar para os vídeos que gozam com a síndrome e aqueles que levam a hashtag #faketourettes.
Christos Ganos, do Departamento de Neurologia na Charite Universitatsmedizin Berlin, na Alemanha, é o coautor de um dos estudos que abordam o tema (“Comportamentos funcionais semelhantes a tiques de início rápido em mulheres jovens durante a pandemia de Covid-19”, em português), o qual envolve especialistas de diferentes países. Ao Observador, confirma que no último ano várias clínicas e hospitais em diferentes pontos do globo testemunharam o aumento destes casos — jovens, sobretudo raparigas, com tiques mais complexos e severos do que aqueles da Tourette e que surgiram de um dia para o outro (na Tourette, os sintomas tendem a aparecer antes dos 18 anos e a manifestar-se durante um ano, entre outras especificidades).
No seu consultório, em Berlim, um em cada cinco casos recebidos nos últimos 12 meses dizem respeito a este fenómeno. O especialista atesta o TikTok como o elemento comum, mas está longe de culpar aquela rede social. “Não podemos culpar as redes sociais, embora possam ter um papel importante”, até porque há fatores neurobiológicos e interpessoais que entram na equação. E nem todas as pessoas envolvidas apresentavam os chamados “tiques funcionais” — comportamentos repetitivos que surgem de repente e que diferem do padrão das crianças com Tourette —, até porque há outros motivos para isso acontecer.
Sobre o assunto, uma porta-voz do TikTok assegurou que “a segurança e o bem-estar” da comunidade são as prioridades, e que a empresa está a “consultar especialistas do setor para entender melhor esta experiência específica”.